Doutrina/Área Civil/Edição 11 e outras/Ação Civil Pública: Abusiva Utilização pelo Ministério Público e Distorção pelo Poder Judiciário /Rogério Lauria Tucci

Ação Civil Pública: Abusiva Utilização pelo Ministério Público e Distorção pelo Poder Judiciário

Rogério Lauria Tucci

Professor Titular Aposentado da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 02 - Set/Out de 2004

Prática Jurídica

§ 1º - Breve Estudo Sobre a Ação Civil Pública
1 Considerações preambulares

Este estudo, em reiteração, resulta da verificação, em nossa lida forense diuturna, da multiplicação de proposituras de ação civil pública, pelo Ministério Público, que vem transformando o importante instituto jurídico processual em referência numa autêntica "panacéia geral para toda e qualquer situação", nas palavras candentes (empregadas alhures, para o mandado de segurança), e bem apropriadas, de Kazuo Watanabe. 1

Realmente, as diversificadas atuações dos membros do Parquet, tanto no plano federal como no estadual, chegando a formular pedidos juridicamente impossíveis, a substituir, sem legitimidade, entidades de classe, e a agir sem o imprescindível interesse processual, têm, segundo entendemos, extravazado, consideravelmente, os lindes estabelecidos na legislação em vigor, de sorte a tornar a ação em estudo inadequada ao escopo perseguido pelo demandante.

Consignando esse declarado propósito inicialmente, vale complementar, na esteira de acórdão da Quarta (4ª) Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, publicado na RJTJESP, 117/42, que a faculdade em lei atribuída, ao Ministério Público, e a outras entidades, quanto à defesa do patrimônio público, do patrimônio social, do meio ambiente, do consumidor, e dos bens, direitos e interesses em preceitos específicos elencados, "precisa ser entendida e compreendida nos seus justos limites".

E, outrossim, acrescentar que, igualmente contribuindo para mais acentuada impropriedade em sua utilização, órgãos fracionários de nossos tribunais de segundo e superior grau, contemplam-na com uma visualização distorcida, generalizando-a ao ponto de confundi-la com a ação popular e a de responsabilização por ato de improbidade administrativa.

2 Interesses difusos, interesses coletivos, e arcabouço de sua proteção

Isso expendido, bem é de ver que nenhuma dúvida pode haver acerca de que alguns dos valores "marcados pelo signo do interesse público", e a par de outros igualmente relevantes e tutelados por normas penais, "devem ser preservados para garantia da segurança, da tranqüilidade, do equilíbrio, da justiça e, enfim, da própria viabilidade do convívio social"; e, "quando transgredidos, somente poderão ser protegidos ou reparados perante o Poder Judiciário". 2

Aqueles presentam-se como interesses difusos, assim denominados em razão de a respectiva titularidade ser "conferida a um número indeterminado e indefinido de pessoas, fática e circunstancialmente ligadas, de sorte a confundirem-se os de umas com os das outras, como se um só todo fossem". 3

Do mesmo modo, como interesses coletivos, que dos difusos se distinguem, por serem pertinentes apenas "aos fins institucionais de determinada associação, corporação ou grupo intermédio, decorrendo necessariamente de um prévio vínculo jurídico que une os associados, sujeitando-os a regime jurídico próprio". 4

Como enfatiza Édis Milaré, 5 com lastro na doutrinação de Péricles Prade, "os interesses coletivos têm como característica principal a ligação com o fenômeno associativo, dirigindo-se aos fins institucionais dos grupos. Resultam de um vínculo jurídico responsável pela união dos indivíduos, como ocorre com os acionistas de determinada empresa, os membros de certa corporação profissional, os empregados de uma mesma fábrica, os integrantes de um sindicato etc. Assim, embora a distinção entre interesses difusos e interesses coletivos seja muito sutil - por se referirem a situações em diversos aspectos análogas, - tem-se que o principal divisor de águas está na titularidade, certo que os primeiros pertencem a uma série indeterminada e indeterminável de sujeitos, enquanto os últimos se relacionam a uma parcela também indeterminada mas determinável de pessoas. Funda-se, também no vínculo associativo entre os diversos titulares, que é típico dos interesses coletivos e ausente nos interesses difusos".

Essa, aliás, é a acepção que, dada a sua propriedade, tem-se generalizado na doutrina universal, como verificável, e. g., nos posicionamentos de Mario Nigro, 6 Vicenzo Vigoriti 7 e Mauro Cappelletti, 8 expressando o primeiro que, embora as palavras não sejam adequadas, melhor do que quaisquer outras exprimem como interesses difusos aqueles "que pertencem de maneira idêntica a uma pluralidade de sujeitos mais ou menos vasta e mais ou menos determinada, a qual pode ser, ou não, unificada mais ou menos estreitamente em uma coletividade (no caso de tal unificação fala-se em interesses coletivos)". 9

Ora, assim, não obstante distintos, substancialmente assemelhados, faziam, como fazem, por merecer a mesma, ou, pelo menos, análoga proteção, sempre que concorrentes determinados requisitos, por meio de um mecanismo apropriado, existente ou introduzido no ordenamento jurídico de um País, numa dada época, e de um instrumento apto à sua efetivação.

Os vários e diferenciados requisitos hão de ser, necessariamente, estabelecidos, com taxatividade, em lei, contemplativa dos bens, direitos e interesses preserváveis.

O mecanismo, por sua vez, deve resultar de normas determinantes do meio e modo, ou dos meios e modos, destinados à prevenção, assim como à repressão, pelos danos que a tais bens, direitos e interesses possam ser causados, ou efetivamente ocorridos; e, ainda, correlatamente, das que especifiquem as instituições e pessoas legitimadas a precatarem qualquer ofensa que se lhes queira fazer, ou reprimirem a que já tenha sido concretizada.

E o instrumento - em virtude da inadmissibilidade de coerção direta, ante a assunção, pelo Estado, do monopólio da administração da justiça, e a conseqüente imprescindibilidade da respectiva tutela jurisdicional, - deve provir, também, de normas do ius positum, reguladoras da atividade compreendida em especialíssima ação judiciária ("qual seja a atuação dos agentes do Poder Judiciário - juízes e tribunais - em prol da realização do direito"), que se desenvolve através do processo, por nós concebido como um instrumento, técnico, público e ético de distribuição de justiça, de índole essencialmente finalística e teleológica, e que se materializa, sempre, num procedimento correspondente à sua esquematização formal". 10

Tudo isso, enfim, se consubstancia no due process of law (em vernáculo, devido processo legal), determinante, num denominado Estado de Direito, como temos frisado e repisado, de : "a) elaboração regular e correta da lei, bem como de sua razoabilidade, senso de justiça e enquadramento nas preceituações constitucionais (substantive due process of law, segundo o desdobramento da concepção norte-americana); b) aplicação judicial da lei através de instrumento hábil à sua interpretação e realização, que é o processo (judicial process); e, c) assecuração, neste, da paridade de armas entre as partes, visando à igualdade substancial. Apresenta-se, ademais, relativamente ao processo judicial, como um conjunto de elementos indispensáveis para que este possa atingir, devidamente, sua já aventada finalidade compositiva de litígios (em âmbito extrapenal)...". 11

3 Regulamentação legal da ação civil pública

Em nosso País, elevado o processo à eminência de garantia constitucional, à efetivação do direito individual (cf. art. 5º, XXXV, da Carta Magna; e, portanto, subjetivo e público) à jurisdição, os apontados requisitos e mecanismo têm sua conformação ditada pela Lei nº 7.347, de 24.07.85 (com as modificações introduzidas pelas Leis nºs 8.078, de 11.9.90, e 8.884, de 11.06.94, e pela Medida Provisória nº 2.102-26, de 27.12.00), e, ainda, pela Constituição Federal em vigor, que, no inc. III do art. 129, incorporou às funções institucionais do Ministério Público a de "promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos".

Analisados em conjunto esse transcrito dispositivo e os enunciados dos arts. 1º e outros da primeiramente indicada lei, verifica-se, sem maior dificuldade, que o legislador nacional teve em mira, com a regulamentação contida nesta e a adição constitucional, o delineamento dos bens, direitos e interesses preserváveis, das instituições e pessoas legitimadas a pleitear, judicialmente, sua preservação ou a responsabilização por danos já causados, e o modus procedendi da efetivação destas.

Naquilo que, precipuamente, interessa ao estudo ora desenvolvido, podem ser assim especificados:

a) bens, direitos e interesses preserváveis: patrimônio público, patrimônio social, meio ambiente, do consumidor, e os de valor cultural, quais sejam artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; ordem ecônomica e economia popular; 12

b) instituições e pessoas legitimadas a promover sua tutela: Ministério Público Federal, Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios, Ministério Público Estadual, autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista e associação (esta, quando constituída há mais de um ano e inclua, entre as suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, e ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, cf. art. 5º, I e II, da Lei nº 7.347/85); e,

c) efetivação da tutela: ação civil pública, disciplinada, principalmente, nos arts. 2º, , e 11 a 18 do mesmo Diploma legal, e, supletivamente, pelo Código de Processo Civil (art. 19); sempre adstrita à potencial ou efetiva causação de dano aos mencionados bens, direitos e interesses.

4 Conceito e caracteres da ação civil pública

Tecidas essas imprescindíveis considerações, a ação civil pública, em nosso ordenamento jurídico, pode ser conceituada como o exercício do direito à jurisdição, pelo Ministério Público, entidade ou pessoa jurídica em lei determinada, com a finalidade de preservar o patrimônio público ou social, o meio ambiente, os direitos do consumidor e o patrimônio cultural, a ordem econômica e a economia popular, ou de definir a responsabilização por danos que lhes tenham sido causados.

Trata-se, outrossim, de ação de conhecimento de caráter condenatório, conferida em maior dimensão ao Ministério Público, e que representa, segundo José Fernando da Silva Lopes, 13 "uma intervenção do Estado, pelo Ministério Público, na ordem jurídico-privada e é por essa expressiva razão que, ao mais das vezes, só é ela admitida em caráter supletivo e pelo manifesto interesse de ordem pública consistente em manter o primado da lei. Sendo o conceito de ordem pública a um só tempo variável e elástico, o exercício da ação civil pública, em grau maior ou menor, decorre necessariamente da própria concepção de Estado em dado momento e do significado que, para ele, tenha a ordem jurídica".

Por isso que, dado o seu caráter excepcional, ela só pode ser admitida nos casos expressamente previstos na legislação em vigor (v., a respeito, Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz et alii 14 e Édis Milaré, 15 - este, reportando-se ao conceito de tipicidade, versado por Mario Vellani; 16 e aduzindo, verbis): "De se ter presente, finalmente, que os casos nos quais se admite o exercício da ação civil pública devem necessariamente vir explicitados na lei, por representarem exceção aos princípios da iniciativa da parte e do dispositivo, vigentes no processo civil. Cuida-se da tipicidade ou taxatividade da ação civil pública. Daí ser ela conceituada como 'direito expresso em lei...'." E, em diversificado aspecto, como toda ação, deve reunir as condições propiciantes do julgamento do meritum causae, quais sejam a possibilidade jurídica do pedido, legitimidade para a a causa e interesse de agir, ou processual (cf., também, art. 267, VI, do CPC).

5 Condições da ação civil pública

a) Possibilidade jurídica do pedido: Destas, prescinde de maior indagação, em nosso direito positivo, a referente à possibilidade jurídica do pedido, isto é, a adequação do pedido do autor à ordem jurídica a que pertence o juiz, de sorte a poder este pronunciar a espécie de ato decisório de mérito solicitado, até porque a ação civil pública encontra-se expressamente prevista na Constituição Federal e em lei específica, supra-indicada.

Entretanto, ainda que admissível, in genere, nada obsta à consideração do pedido formulado na petição inicial como juridicamente impossível sempre que, no caso concreto, se apresente desconforme com as normas jurídicas vigentes, ou esteja expressamente vedado pelo ius positum (como, por exemplo, no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 7.347, de 24.7.85, introduzido pela Medida Provisória nº 2.102-26, de 27.12.00, a saber: "Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados.").

b) Legitimação para a causa: Ademais, no tocante à legitimação para a causa - como tal entendida a titularidade ativa ou passiva afirmada pelo autor, ao ajuizar a ação, - bem é de ver que a aludida Carta Magna de nossa República Federativa, no também apontado art. 129, III, ampliou, consideralvemente, a do Ministério Público, que, no dizer de Clóvis Beznos 17, é "incondicionalmente legitimado", sempre "que preenchidas determinadas condições". 18

Todavia, como apregoado por Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz et alii, 19 acolitando autorizada doutrinação alienígena e nacional, 20 e endossados por Édis Milaré, 21 o "preceito que vige no nosso sistema, atinentemente à ação civil pública, é o da obrigatoriedade temperada com a conveniência e a oportunidade. Não vamos chegar ao extremo de dizer que a atividade do Ministério Público quanto à ação civil é ilimitadamente discricionária, ficando ao alvedrio do órgão a propositura ou não da ação. No entanto, verificando que não há suporte legal para o ajuizamento da ação civil, ou, ainda, que não é oportuna ou conveniente essa propositura, poderá deixar de exercer o poder-dever de ação. Quanto a essa temperança, a doutrina parece estar de acordo".

Deve ter-se presente, portanto, que, embora incidente a regra da obrigatoriedade, ínsita ao poder-dever funcional de atuar no interesse público, há situações em que ao órgão ministerial não é dado aforar a ação civil pública, entre outros motivos, pela falta de suporte legal para o exercício do direito à jurisdição.

Em suma, e respondendo à indagação formulada por um dos especialistas por último citados, a legitimação "ad causam" do Ministério Público, apesar da ampliação estabelecida pela vigente Constituição Federal, não pode significar, à evidência, que possa o membro do Parquet dispor da propositura da ação civil pública a seu alvedrio.

Servo da lei, como todos os integrantes da comunidade, somente poderá (e deverá) ajuizá-la quando "preenchidas determinadas condições", quais sejam as concernentes às previsões normativas de sua conduta, especialmente as que, em numerus clausus, estatuem os lindes de sua atuação em defesa dos interesses difusos e coletivos (expressões que a própria Constituição Federal sobreleva no já mencionado art. 129, III, tendo-as não "como sinônimas, mas como realidades diversas, ou melhor, como espécies diversas "ao utilizar a conjunção aditiva e, em lugar da alternativa ou."). 22

c) Interesse de agir ou processual: Como também já verificado, a preconização dos casos em que é conferida ao Ministério Público a titularidade da ação civil pública encontra-se determinada nos já transcritos arts. 1º da Lei nº 7.347/85, com as alterações já mencionadas, e 129, III, da Constituição da República Federativa do Brasil.

Mesclando, necessariamente, os enunciados destes, para, em síntese objetiva, proceder à determinação daqueles, restringem-se, como igualmente visto, à defesa do patrimônio público, do patrimônio social, do meio ambiente, do consumidor, do patrimônio cultural, em que se contêm os "bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico", e de outros interesses difusos e coletivos, além da ordem econômica e da economia popular.

Abstração feita, agora, da conceituação de interesses difusos e de interesses coletivos, antecedentemente exposta, e em apertada digressão, não se pode fugir, desde logo, a que os bens e direitos tuteláveis, lato sensu considerados, chegam, às vezes, a confundir-se um com os outros.

De qualquer sorte, e seguindo, em princípio, propositadamente, a ordem inversa da restante enunciação, o patrimônio cultural, como um todo, diz com a precatação de bens e direitos cuja natureza se faz integrante do meio ambiente, definido por José Afonso da Silva 23 como "a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida humana".

E, como se obvia na expressão da própria lei, bens e direitos que ostentem valor concernente à arte, à estética, à história, ao turismo e à paisagem, seja qual for o modo de consideração de sua valia e qualidade nas tradições da pujança nacional.

O meio ambiente, por sua vez, embora tido, em estrito senso, como a expressão do patrimônio cultural e suas relações com o ser vivo, reclama, em sua regulamentação jurídica, concepção mais ampla, "globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos", compreendendo, portanto, três classes, a saber:

a) meio ambiente natural, constituído pelo solo, água, ar atmosférico, flora, fauna;

b) meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, o qual, apesar de sua artificialidade, em regra, distingue-se do meio ambiente artificial "pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou"; e,

c) meio ambiente artificial, composto pelo espaço urbano construído, em que se compreende o conjunto de edificações (espaço urbano fechado), e dos equipamentos públicos, formados pelas ruas, praças, áreas verdes, espaços livres em geral, que constituem o espaço urbano aberto. 24

Sua conceituação abrange, outrossim, a de patrimônio público, "a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo". 25

Já a de consumidor se encontra delineada, também legislativamente, no art. 2º do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), assim redigido: "Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire produto ou serviço como destinátario final. Parágrafo único - Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo". 26

Conceito amplo, abrangente de toda pessoa (física, jurídica, até mesmo "ente despersonalizado"), que tenha adquirido produto ou utilizado serviço em caráter final, 27 abarca quaisquer membros da comunidade, sem nenhum vínculo jurídico entre si, de sorte a revelar que a proteção do consumidor em geral diz, por igual, com a de interesses difusos. 28

Por outro lado, patrimônio social tem sua acepção necessariamente abrangida pela de patrimônio público, que pode ser definido, em sentido amplo, como o "conjunto de bens, de qualquer espécie, que pertencem diretamente aos entes estatais, que os administram para atendimento do interesse geral"; e, em restrito senso, como o "conjunto dos bens de uso especial e dos bens dominicais da pessoa pública, respectivamente, bens do patrimônio indisponível e bens do patrimônio disponível (Código Civil, arts. 65 a 68)". 29

Com ressalta Édis Milaré, 30 "ambos são faces da mesma moeda", caracterizando-se o patrimônio social pela sua mais acentuada especificidade, concernindo aos bens de uso comum do povo (res communes omnium), que são sempre indisponíveis.

Aliás, somente a preocupação do legislador constituinte de que se interpretasse restritivamente a locução patrimônio público justifica o estabelecimento dessa diversificação conceptual, até porque ela não se refere, apenas, às relações jurídicas que tenham expressão pecuniária, mas, por igual, aos bens e direitos "espiritualmente valiosos"; 31 ou seja, não se vincula mais, exclusivamente, à idéia de valor econômico, a saber: "Esse conceito desmonetizado de patrimônio dilatou notavelmente a área da ação popular, ensejando sua utilização na tutela de interesses que, até então, estavam à margem da vida jurídica, como os ligados ao urbanismo, às atividades edilícias, à proteção do meio ambiente, à preservação de paisagens naturais notáveis, de jazidas arqueológicas e de obras ou de locais do valor histórico-cultural". 32

Daí, por certo, a identificação do conceito de patrimônio público nos âmbitos da ação civil pública e da ação popular, não obstante, como será demonstrado mais adiante, distintos os respectivos objetos.

De resto, a preservação da ordem econômica - "ordem jurídica da economia", "sistema normativo (no sentido sociológico) da ação econômica", ou "modo de ser empírico de uma determinada economia concreta", 33 - diz com a necessidade de preservação de valores atrelados ao trabalho humano e à livre iniciativa, determinantes de "existência digna, conforme os ditames de justiça social"; com a observância dos postulados expressos no art. 170 da Constituição Federal. 34

E a da economia popular com a proteção do patrimônio de um número indeterminado de pessoas, do "povo", de sorte a obviarem-se os efeitos de ação ou ações perniciosas de indivíduos ou entidades gananciosas, em âmbito negocial. 35

Acrescente-se que, para restar configurado o interesse de agir do Ministério Público, em casos que tais, deve concorrer, como já aventado, a potencial ou efetiva causação de dano aos pontuados bens, direitos e interesses.

Do contrário, não haverá o imprescindível relacionamento causal entre a situação antijurídica denunciada ao órgão do Poder Judiciário e a prestação jurisdicional dele solicitada; isto é, faltará o interesse processual, que somente se revela "quando, configurado o litígio, a providência jurisdicional invocada é cabível à situação concreta da lide, de modo que o pedido apresentado ao juiz traduza formulação adequada à satisfação do interesse contrariado, não atendido, ou tornado incerto". 36

E, conseqüentemente, como ensina Enrico Tullio Liebman, 37 o juiz não deve sequer examinar o pedido, verbis: "Por isso" (o interesse processual, ou interesse de agir), "brota diretamente do conflito de interesses surgido entre as partes, quando uma delas procura vencer a resistência encontrada, apresentando ao juiz um pedido adequado. A existência do conflito de interesses fora do processo é a situação de fato que faz nascer no autor interesse de pedir ao juiz uma providência capaz de resolvê-lo. Se não existe o conflito ou se o pedido do autor não é adequado para resolvê-lo, o juiz deve recusar o exame do pedido como inútil, antieconômico e dispersivo". 38

6 Inquérito civil

Reclama, outrossim, o estudo desenvolvido, sua complementação parcial, referente a, sucinta que seja, análise do inquérito civil.

Umbilicalmente ligado à ação civil pública, por força da preceituação constitucional contida no inc. III do art. 129 da vigente Carta Magna de nossa República Federativa, 39 e, ainda, pelo disposto no § 1º do art. 8º da Lei nº 7.347/85, 40 ele consiste num procedimento administrativo precedente a ação, destinado à perseguição dos fatos em que se subsume ofensa, potencial ou concreta, a qualquer dos bens, interesses ou direitos por ela preserváveis, e, conseqüentemente, à preparação de seu aforamento. 41

Como bem anotou José Celso de Mello Filho, 42 precisando-o: "O projeto de lei, que dispõe sobre a ação civil pública, institui, de modo inovador, a figura do inquérito civil. Trata-se de procedimento meramente administrativo, de caráter pré-processual, que se realiza extrajudicialmente. O inquérito civil, de instauração facultativa, desempenha relevante função instrumental. Constitui meio destinado a coligir provas e quaisquer outros elementos de convicção, que possam fundamentar a atuação processual do Ministério Público. O inquérito civil, em suma, configura um procedimento preparatório, destinado a viabilizar o exercício responsável da ação civil pública...".

Ora, tratando-se de procedimento administrativo, e como qualquer outro da mesma natureza, inclui-se a sua realização na previsão contida no inc. LV do art. 5º da mesma Carta Magna de nossa República Federativa.

E isso significa, obviamente, que não pode ser constituído e desenvolvido sem conhecimento e participação da pessoa física ou jurídica que deva, eventual e oportunamente, sofrer os efeitos da propositura da ação civil pública a que dirigido: inibe-o, por certo, não só o enfático enunciado do colacionado preceito constitucional, como do antecedente inc. LIV, que, regrando a inafastabilidade, em situações que tais, do devido processo legal, exige a paridade de armas entre os litigantes e, por via de conseqüência, o contraditório ínsito à ampla defesa do agente ao qual imputados o fato ou os fatos objeto da investigação prévia. 43

Tem-se pois, à vista do exposto, como induvidoso que o inquérito civil, instituído pelo § 1º do art. 8º da Lei nº 7.347/85, e institucionalizado pelo art. 129, III, da mesma Lei das Leis nacional, será nulo "ex radice", quando realizado sem que se propicie, como de mister, a participação ativa e contraditória daquele que deva sofrer os efeitos do aforamento de subseqüente ação civil pública.

E até, por necessária coerência, que tal nulidade, a ser declarada de plano, acarretará a inviabilidade de ação nele fundamentada, ou seja, a extinção do processo sem julgamento do mérito, por falta de pressuposto inarredável de sua constituição e desenvolvimento válidos.

Com efeito, já de há muito, com o advento da atual Carta Magna de nossa República Federativa, não há mais lugar para qualquer dúvida acerca da inafastabilidade de contraditório e da ampla defesa, com todos os meios e recursos dela integrantes, em qualquer processo judicial, ou procedimento administrativo no qual uma pessoa, na acepção ampla que o preceito constitucional inserido no inciso LV do art. 5º sugere, figure como acusada: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes".

Inspirou-se, certamente, o legislador constituinte, ao editar essa norma, no senso comum de que, como bem observa Celso Ribeiro Bastos, 44 "já dentro da instância administrativa podem perpetuar-se graves lesões a direitos individuais cuja reparação é muitas vezes de difícil operacionalização perante o Judiciário". E, arrematando, verbis: "Daí porque esta preocupação em proteger o acusado no curso do próprio processo administrativo ser muito vantajosa, mesmo porque, quanto melhor for a decisão nele alcançada, menores são as chances de uma renovação da questão diante do Judiciário".

§ 2º - Ação Civil Pública e Outras, Correlatas
7 Ação civil pública e ação popular

Faz também por merecer a atenção do analista, em estudo como o ora desenvolvido, a distinção ocorrente entre a ação civil pública e outras, correlatas.

Assim é que cotejados, em linha de princípio, os objetos da ação civil pública e da ação popular, tem-se que, embora esta possa ser considerada modalidade daquela, não há como confundi-las, especialmente em nosso ordenamento jurídico, à luz do ius positum.

Com efeito, a ação popular, 45 em generalizado consenso, tem por finalidade precípua o controle de atos ilegais e prejudiciais ao patrimônio da União, dos Estados e dos Municípios, bem como de suas organizações autárquicas ou paraestatais, e de pessoas jurídicas subvencionadas com verba pública; da moralidade administrativa e do patrimônio histórico e cultural, a saber: "... a ação popular consiste num instituto de índole constitucional e natureza processual, outorgado ao membro da comunhão social como garantia política, tendo em vista a defesa do interesse coletivo, 'mediante a provocação do controle jurisdicional corretivo da ilegalidade dos atos lesivos do patrimônio público' ". 46

Assim sendo, é concedida, exclusivamente, ao cidadão (pessoa física), pela legislação em vigor, 47 e deve objetivar, principalmente, a demonstração de ilegalidade do ato questionado e da conseqüente lesividade ao patrimônio público". 48

Como assevera, precisamente, Hely Lopes Meirelles, 49 "... a ação popular é o meio idôneo para o cidadão pleitear a invalidação desses atos, em defesa do patrimônio público, desde que ilegais e lesivos de bens corpóreos ou dos valores éticos das entidades estatais, autárquicas e paraestatais, ou a elas equiparadas".

E, de resto, como lembra, ainda, mais adiante, 50 sua utilização não exclui a da ação civil pública, dado que a Lei nº 7.347/85, em seu art. 1º, "admite expressamente, a concomitância de ambas".

Ora, isso mostra, à saciedade, que se ambas as ações, civil pública e popular, podem ser aforadas simultaneamente, cada uma delas, por certo, atende a uma diferente finalidade, não podendo a daquela coincidir com a desta, sob pena da incidência de um bis in idem, de todo repugnante ao direito.

De qualquer modo, e para sua melhor caracterização, deve ter-se presente, sempre, que, havendo mero interesse patrimonial, na expressão autêntica dos vocábulos, sem repercussão no interesse público, inadmissível afigura-se a utilização da ação civil pública: "... como o patrimônio público, em sentido amplo, se compõe de bens disponíveis e indisponíveis, há que se perquirir caso por caso a existência ou não do interesse público, de modo a justificar o ajuizamento da ação civil pública. Por certo, estando em jogo mero interesse disponível de uma entidade estatal, como na cobrança de um imposto, não se há de lobrigar, de logo, a presença, aí, não do interesse público, ou seja daquele interesse geral ligado a valores de maior relevância, vinculado a fins sociais e às exigências do bem comum. Não. Na espécie há simples interesse patrimonial, sem repercussão no interesse público, a ser curado pela própria Fazenda Pública, que, para tanto, dispõe de corpo profissional próprio, sendo ademais, protegida pelo duplo grau de jurisdição. Assim não fosse, razão inexistiria para a regra do art. 129, IX, da atual Constituição, que veda ao Ministério Público - tutor nato de interesse público - a representação judicial e a consultoria de entidades públicas". 51

Em suma, tendo em vista as variegadas peculiaridades que as conotam, especialmente as alusivas à legitimidade ativa e à tipologia dos interesses protegidos, em tudo distintos, há que se atentar para a correta utilização de cada uma delas, sendo o autor, evidentemente, carecedor da ação civil pública, quando adequada for a ação popular.

8 Ação civil pública e ação de responsabilidade por atos de improbidade administrativa

Do mesmo modo - deve ser aduzido, - inconfundíveis presentam-se no Direito brasileiro, a ação civil pública e a ação de responsabilidade por atos de improbidade administrativa.

Realmente, esta nova modalidade de atuação do Ministério Público, 52 regida pela Lei nº 8.429, de 02.6.92, visa à coibição de "atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual" (cf. art. 1º).

Trata-se, outrossim, de ação cuja utilização vem determinada nos arts. 9º, 10 e 11 desse mencionado Diploma legal, ao estatuir, numa enumeração praticamente exaustiva, quais os atos de improbidade administrativa por ela coibíveis.

Ademais, sua propositura condiciona-se à observância do disposto no art. 17, que preconiza a indispensabilidade de precedência de medida cautelar de seqüestro, regulamentada no art. 16, 53 verbis: "A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar". 54

Daí, por certo, ficar ela sujeita à concorrência dos seguintes requisitos: a)prática de ato de improbidade administrativa, por agente público, servidor ou não, de qualquer das pessoas jurídicas elencadas no art. 1º da Lei nº 8.429/92; b) promoção prévia de medida cautelar de seqüestro na forma estabelecida no art. 16; c) aforamento da ação no prazo de trinta (30) dias, contados da efetivação da medida cautelar: d) petição inicial elaborada nos moldes do art. 282 do Código de Processo Civil.

O procedimento a ser adotado é o ordinário, disciplinado também no Código de Processo Civil (mesmo art. 282 e ss.), nele intervindo o Ministério Público como custos legis, quando não seja, ele próprio, o autor.

E a sentença a ser proferida, quando tiver como procedente o pedido formulado na petição inicial, ordenando a reparação de dano verificado, ou decretando a perda de bens havidos ilicitamente, determinará o pagamento ou a reversão dos bens, em favor da pessoa jurídica prejudicada. 55

Obrigatória, enfim, a intervenção do Ministério Público, quando não for o autor da ação (cf. § 4º do art. 17), presenta-se esta, também, com a característica de obstar a qualquer "transação, acordo ou conciliação" (§ 1º do mesmo art. 17).

E tudo isso evidencia que, a par de sua diferente finalidade, igualmente distinto é o objeto da ação de responsabilidade por atos de improbidade administrativa, ostentando, portanto, peculiaridades que a extremam da ação civil pública.

9 Exegética interpretação das normas atinentes às ações cotejadas

Vem a pelo, a respeito de uma análise conjugada das disposições legais atinentes a essas cotejadas ações, o pronunciamento, consubstanciado em sua exegética interpretação, da Sétima (7ª) Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar a Apelação Cível nº 030.947-5/4, da Comarca de Paraguaçu Paulista, 56 com o destaque inicial de que "a evidência de o Ministério Público possuir legitimação ativa não torna pública nenhuma ação civil" (idéia consistente "em resquício, vestígio, sem cabência da classificação subjetiva das ações penais condenatórias, que irrompe, primeiro, na lei penal").

Foi nele, com efeito, estabelecida, com nitidez, a distinção entre a ação civil pública e as popular e de responsabilidade por atos de improbidade administrativa, especialmente esta, em exaustiva comparação, que faz por merecer a transcrição seguinte:

"A ação civil pública" (que "tão só, pode guardar seis finalidades, marcadas nas leis"), "dado o seu caráter excepcional... só pode ser admitida nos casos expressamente permitidos na legislação em vigor (v., a respeito, Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz et alii - 'A ação civil pública e a tutela jusridicional dos interesses difusos' -; e Édis Milaré - 'A ação civil pública na nova ordem constitucional' - este reportando-se ao conceito de tipicidade, versado por Mário Vellani - 'Sulla tipicità dell'azione civile del Publico Ministero' -; e aduzindo verbis): 'De se ter presente, finalmente, que os casos nos quais se admite o exercício da ação civil pública devem, necessariamente, vir explicitados na lei, por representarem exceção aos princípios da iniciativa da parte e do dispositivo, vigente no processo civil. Cuida-se da tipicidade ou taxatividade da ação civil pública. Daí ser ela conceituada como o 'direito expresso em lei...'. O autor invocado, ainda, observa que 'também na ação civil pública, prevalece, como é obvio, a regra da demanda' (Rogério Lauria Tucci. 'Ação civil pública e sua abusiva utilização pelo Ministério Público', em Ajuris 56/35-55, Porto Alegre, novembro de 1992, p. 41). Diga-se, exigência de adstrição do juiz ao pedido da parte (art. 460, do Cód. de Proc. Civil).

O objeto da ação acha-se no pedido do autor (arts. 282, inc. IV e 286, do Cód. de Proc. Civil). Ora, o objeto imediato de tutela, da ação civil pública, pertine à declaração do direito ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio cultural e natural, e a 'qualquer outro interesse difuso ou coletivo'; sem esquecer a ordem econômica; ainda, aos patrimônios público e social; com a conseqüente condenação do responsável, pela violação dos aludidos direitos. Já, o objeto mediato exibe-se na reparação em dinheiro; ou na obrigação de fazer ou não fazer. No último caso, toma caráter comunitário (arts. 3º e 11, da Lei nº 7.347/85 c/c art. 287, do Cód. de Proc. Civil). Anote-se, desde logo, que, emergindo condenação em dinheiro, 'a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo, gerido por um Conselho Federal e por Conselhos Estaduais' (arts. 13 e 20, da Lei nº 7.347/85 e Lei nº 9.008, de 21 de março de 1995, assim como Decreto nº 1.306, de 09 de novembro de 1994). Vedado dar-lhe outra destinação.

A ação de reparação do dano, nascente em atos de improbidade administrativa, guarda por objeto imediato a declaração de existência de ato, tal como reclamado - praticado por agente público, ou terceiro envolvido, 'contra a administração direta, indireta ou fundacional... empresa incorporada ao patrimônio público, ou entidade, para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido, ou concorra...' (arts. 1º e 3º, da Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992); além de outras entidades, que recebam '... subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público...' (art. 1º, parág. único, do aludido diploma) -, que importem em enriquecimento ilícito; ou provoquem lesão ao erário; ainda, os que 'atentem contra os princípios da administração pública' (arts. 9º, 10 e 11, da Lei nº 8.429/92); seguida da condenação do responsável. O objeto mediato acha-se na reparação em dinheiro, ou no perdimento ou reversão de bens determinados, havidos, de modo antijurídico; aplicação de sanções, como a perda da função pública, a suspensão de direitos políticos e a condenação de multa civil. E, sempre, quase tudo 'em favor da pessoa jurídica, prejudicada pelo ilícito' (art. 18, da Lei nº 8.429/92).

Ambas as ações jamais se identificam. Nem se cuida de espécies, ligadas a gênero, constituinte de alguma categoria jurídico-processual. Não exibem elas a mesma finalidade; não ostentam a mesma causa de pedir; e não apresentam o mesmo objeto, ou pedido. As diferenças, entretanto, não se esgotam nesses elementos.

A equiparar, de maneira ilusória, as duas ações divisa-se o patrimônio público. O conceito legal, ou formal, ostenta-se conhecido: 'Consideram-se patrimônio público... os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico' (art. 1º, § 1º, da Lei nº 4.717/65, com a redação, dada pela Lei nº 6.513/77). Conceito que, ainda, se completa, na chamada Lei de Enriquecimento Ilícito (art. 1º e parág. único), com a afirmação de serem os referidos bens e direitos 'da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, Territórios, de autarquias, de empresas públicas, de sociedades de economia mista, de fundações instituídas pelo Poder Público, de empresas incorporadas, de empresas com participação do erário e de entidades subvencionadas pelos cofres públicos' (Marino Pazzaghini Filho et alii. 'Improbidade administrativa: aspectos jurídicos da defesa do patrimônio público'. São Paulo, Atlas, 1.996, § 5.1, p. 67).

Exsurge fácil, até, verificar que - no tocante ao patrimônio público - a ação de reparação do dano, por atos de improbidade administrativa, possui âmbito mais amplo, do que a ação civil pública, em razão e por força das mencionadas especificações. Sem esquecer de que, no seu perímetro, se acha o erário, o tesouro, dizente com as finanças públicas.

Os atos e fatos, que levam a intentar a ação civil pública, afloram menos graves, do que os modelados, para ensejar a ação de reparação do dano. Há escalas distintas de ataque, ou de ameaça ao patrimônio público, de manifesto. Basta ter em mente que a ação civil pública admite transação e compromisso de ajustamento (art. 5º, § 6º, da Lei nº 7.347/85 e art. 113, da Lei nº 8.078/90). Na ação de reparação de dano, por improbidade administrativa, proíbe-se 'transação, acordo ou conciliação' (art. 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92). Tal diferença deveria, por igual, espancar enganos.

Possui, portanto, o Ministério Público dois instrumentos processuais de proteção ao patrimônio público e nada conduz à pretensa unicidade. Importa invocar passo de venerando aresto - inobstante os casos não exibam semelhança -, que assentou existirem situações jurídicas, onde se lê 'a lei com os olhos fechados', ou com 'as letras da imaginação, supondo haver dito o que em nenhum momento disse' (Ap. Cível nº 177.208-1/0, São Paulo, Terceira Câmara Cível, Rel. Des. Toledo César, J. em 20/10/92, v.u.). Não se localiza preceito legitimador da assertiva de ser civil pública a ação de reparação do dano, por ato de improbidade administrativa.

Sem esquecer de que, no caso dos autos, seria possível, em tese, aforar ação popular (art. 5º, inc. LXXIII, da Const. da República c/c art. 1º, da Lei nº 4.717/65). O Ministério Público, então, surgiria sem legitimidade ativa, também.

A simples análise do lugar, em que as três diferentes ações acham-se colocadas, na Lei Maior, deve alertar o intérprete e o aplicador. A ação popular encontra-se dentre os direitos individuais e suas garantias (art. 5º, inc. LXXIII). Já, a ação indenizatória, nas hipóteses de improbidade administrativa está nas disposições gerais, atinentes à Administração Pública (art. 37, § 4º). A ação civil pública encontra-se posta na Seção pertinente ao Ministério Público, compondo-lhe o elenco de funções institucionais (art. 129, inc. III). Como método hermenêutico, a interpretação sistemática tange a não misturar as ações."

Nada mais será necessário acrescentar, por certo, em prol da determinação de que, em tudo distintas, a ação civil pública não pode ser confundida nem com a popular, e muito menos com a de responsabilidade por atos de improbidade administrativa.

§ 3º - Visualização Concreta do Tema
10 Limitação legal da atuação do Ministério Público

De todo o expendido nos precedentes parágrafos deste breve ensaio, parece-nos ter sido clarificado que o Ministério Público somente pode utilizar o importante instrumento de tutela de interesses públicos e sociais relevantes, que constitui objeto precípuo da análise desenvolvida, nos casos expressamente previstos na legislação em vigor.

E, mesmo assim, dada a excepcionalidade de sua atuação mediante a ação civil pública, quando, a par do suporte legal, seja oportuna e conveniente e sua propositura, que deverá concretizar-se objetivamente, sem qualquer conotação personalística, e, obviamente, sem um mínimo de paixão; vale dizer, com absoluta exação.

Exige-o a Constituição Federal, ao expressar no art. 127, in fine, que, como "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado", lhe incumbe "a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis"; e determinando-lhe, outrossim, no art. 129, II, como uma de suas "funções institucionais", o zelo pelo efetivo respeito "aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia".

Igualmente, a sua posição sui generis no universo da distribuição da Justiça, em que sobrelevado o "absurdo psicológico" intuído por Piero Calamandrei, 57 reclamante de senso de equilíbrio, ponderação, acuidade e subserviência à legislação em vigor.

Do contrário, haverá, de sua parte, inescondível afronta à igualdade substancial, necessariamente encartada na concepção do due process of law, 58 com o comprometimento total, desde logo, da regularidade de sua atuação, e, por via de conseqüência, do processo cuja formação origina.

Em suma, e como também já salientado, o aforamento da ação civil pública não pode (melhor: não deve) ficar ao alvedrio do Ministério Público: o poder-dever de ajuizá-la há que cingir-se, não só à taxatividade imposta pelo ordenamento jurídico, como, também, à verificação exegética das suas específicas preceituações.

Não basta, com efeito, e exempli gratia, que lhe seja permitido o exercício do direito à jurisdição, visando à tutela de interesses difusos ou coletivos. Faz-se, outrossim, necessária a constatação de sua legitimidade para, em determinado caso, patrociná-las; da medida de seu interesse, e, ainda, da possibilidade jurídica da sua atuação.

11 Proliferação de ações civis públicas

a) Impossibilidade jurídica do pedido

Isso tudo é de ressaltar-se, como frisado de início, em virtude da diuturna cognição de proposituras de ação civil pública, por membros do Parquet, à guisa de preservar interesses difusos, ou coletivos, com abstração dos mais comezinhos regramentos jurídicos.

Num dos casos conhecidos (e passamos, já agora, a mera e breve exemplificação), o Ministério Público Federal, formulando pedido juridicamente impossível, ostentou a qualidade de cobrador da dívida ativa da Fazenda Pública federal.

Assim é que, pleiteando fosse "anulado, por vício de ilegalidade" (sic) contrato de refinanciamento de dívida, celebrado entre o Banco do Brasil e sociedade por ações, de que determinado Estado detinha o controle acionário, manifestou a seguinte pretensão, verbis: "... b) seja a União Federal compelida a inscrever o débito objeto do contrato referido como Dívida Ativa da Fazenda Pública, a teor do disposto no art. 39, § 2º, da Lei nº 4.320, de 17.3.64, c/c o art. 2º da Lei nº 6.830/80; c) seja marcado prazo razoável para o cumprimento da obrigação constante da alínea b deste pedido, sob pena de cominação de multa diária, em valor a ser fixado por este Juízo; d) após a inscrição do débito, seja a União Federal compelida a proceder à sua cobrança de conformidade com as normas legais e regulamentares relativas às empresas privadas".

Ora, em primeiro lugar, não há como vislumbrar-se interesse difuso, ou coletivo, na anulação (rectius: declaração de nulidade) de um contrato de financiamento realizado entre instituição financeira e sociedade comercial, de que natureza seja.

Ademais, além da complexidade administrativa ínsita à inscrição da dívida ativa da Fazenda Pública, não há, por certo, como fixar-se judicialmente determinado prazo para realização de procedimento administrativo, com maior ou menor número de atos e termos.

E, finalmente, inadmissível, impossível mesmo, juridicamente, mostra-se a pretensão de ato decisório de mérito determinante, ao vencido, da propositura, por ele, de outra ação (em que redundaria, inafastavelmente, a ordem de proceder à cobrança da dívida "de conformidade com as normas legais e regulamentares relativas às empresas privadas").

Tal, e inominado, o absurdo jurídico em que ela se consubstancia, que se torna despicienda qualquer adição ao derradeiro enfoque da versada situação concreta.

É de acrescentar-se, apenas, que, no âmbito da ação civil pública, o pleito de condenação em dinheiro somente se justifica quando, nos termos do disposto no art. 13 da Lei nº 7.437/85, objetiva sua destinação a fundo.

Qualquer outra espécie de pretensão, em diversificado senso, se consubstanciará, induvidosamente, num pedido juridicamente impossível. 59

b) Ilegitimação para a causa

Em situação outra, quando não se cogite de uma das hipóteses em lei, taxativamente, previstas, verificar-se-á a ilegitimação para a causa do Ministério Público.

Assim, exemplificando também, em caso submetido à apreciação da Quarta (4ª) Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 60 que a proclamou, por ter o órgão do Parquet intentado ação civil pública, visando à tutela de interesses, ditos difusos de alunos e/ou seus genitores ou responsáveis, no tocante à majoração de preços de serviços prestados por estabelecimento de ensino.

Enfatizou, então, em seu voto, condutor do aludido julgamento, o Desembargador Cunha de Abreu, que a afirmação de os interesses em jogo serem "efetivamente difusos, na medida em que não se restringem a esfera de interesses de número finito de indivíduos, senão a toda a coletividade, alcançada pelo resultado a ser ditado, não se sabendo bem quais segmentos dessa coletividade", esbarra na mens legislatoris; não podendo, por outro lado, o Parquet exercer o munus concedido pela lei ao advogado, se não usurpando a sua atividade profissional.

E, de todo o excelente pronunciamento judicial, vale transcrever o tópico conclusivo, que dispensa, também, mais alentadas considerações, e verbis: "Não parece ter sido essa em verdade a intenção do legislador constituinte, que de uma penada teria assim erigido o Parquet em Curador e custos legis universal, sem oitiva dos beneficiados, dispensando o concurso ou ao menos a presença obrigatória do advogado, visto que levado o alcance do posicionamento ministerial às suas culminâncias, todo e qualquer interesse pode ser tido e rotulado de difuso, na esteira do que disse alguém alhures, que tudo o que afeta o menor dos indivíduos a todos afeta... Por outro lado, não pode realmente o Parquet exercer o munus que a lei concedeu ao advogado, pena de insuportável usurpação e virtual obsolescência da nobre atividade, relegada que estaria ao rol das excentricidades das partes, não se vislumbrando porque alguém - refere-se aqui os não pobres no sentido da lei - iria procurar e pagar um advogado, se pode ter seus interesses superiormente e gratuitamente defendidos por uma instituição do porte do Ministério Público, de indiscutível ascendência moral e festejável nível intelectual".

Nesse mesmo sentido, outrossim, é de ser colacionado acórdão da Primeira (1ª) Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 61 cujo voto condutor, do Desembargador Araken de Assis, pontuou, com exação, verbis: "Em relação à legitimidade, ademais dos argumentos trazidos pelo eminente professor Rogério Lauria Tucci, em artigo que selecionei para publicação na Revista AJURIS exatamente pelo seu elevado conteúdo científico, e porque fere a questão atual quanto às funções institucionais do 'Parquet', desejaria enfatizar, como já fiz em outras ocasiões que, nos termos do art. 129, III, da Constituição Federal, o Ministério Público só tem legitimidade para promover ação civil pública em defesa de interesses difusos e coletivos, que são os 'interesses sociais' inculpidos no 'caput' do art. 127. Não são direitos de índole diversa, e, muito menos, direitos patrimoniais disponíveis, como se verifica na espécie. Conceder a esfera legitimante do parquet diversamente, levaria à aniquilação dos direitos privados, à alteração, por órgão do Estado, do objeto litigioso; em qualquer demanda bastaria autorizar a intervenção do Ministério Público em qualquer processo para que o fenômeno se produzisse, e transformaria o Ministério Público num organismo com poderes ainda maiores do que a 'Prokuratura' soviética, muito bem lembrada no voto do eminente Des. Lacerda. Decididamente, não foi este o quadro dentro do qual operou a Constituição de 1988. E é por tal razão que, toda vez que as ações movidas pelo Ministério Público visarem a tutela de direitos subjetivos privados e disponíveis, há flagrante ilegitimidade ativa".

Assim também, outro pronunciamento, já agora da Quinta (5ª) Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, da lavra do Desembargador Francisco Casconi, num recurso 62 em processo no qual o Ministério Público pretendia que, na Comarca em que oficiante, em todos os depósitos judiciais fossem acrescentados, pelos estabelecimentos bancários oficiais depositários, valores correspondentes às diferenças relativas aos índices de inflação, calculados com base no IPC deles expurgado (26,06%, 70,28%, 84,32%, 44,80% e 7,87%, decorrentes de sucessivos planos econômicos nacionais), e "com individualização e imediata comunicação ao Juízo do número de contas, prevalecendo a determinação para depósitos futuros"; e do qual destacáveis os seguintes trechos:

"A qualificação de agir conferida ao parquet, em defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, não alcança direito subjetivo. Já o interesse coletivo com força para garantir a aplicação da lei que protege o consumidor, é aquele que atinge a todos os que integram a coletividade, sem possibilidade de encampar alguns titulares de contas judiciais, como ocorre na espécie sub judice. Do que se colhe dos autos, a correção monetária plena pelo índice de variação do IPC, amplamente debatida, cujo benefício eventual diz respeito a direito disponível que apenas ao interessado compete reivindicar ou reclamar, alcança pessoas físicas que foram, ainda mantém, ou serão, no futuro, titulares de depósitos em juízo.

O interesse coletivo no Código do Consumidor, conforme lição de Hugo Nigro Mazzilli, lembrada em lúcido parecer da lavra de Vicente Greco Filho em procedimento enfrentado recentemente nesta Câmara e relatado pelo Eminente Jorge Tannus, só permite a defesa de grupos determinados de pessoas no caso de isto convir mais diretamente à coletividade como um todo, o que efetivamente não ocorre na hipótese concreta, onde vislumbrou o dedicado Representante do Ministério Público de Ibitinga possibilidade de prejuízo ao direito de titulares não só de contas judiciais já encerradas, bem como das ainda em movimento por ordem do juízo e futuras";

"Na hipótese vertente, fixada defesa de determinado grupo de titulares ou ex-titulares de contas judiciais que nada reclamaram, cujas razões não levam ao interesse público de irrestrita abrangência, inaplicável é a dicção do inciso I, artigo 82, do Código já mencionado"; e,

"É verdade, como já se afirmou, que 'é cômodo acionar o Ministério Público, inclusive porque não se corre o risco da sucumbência', registrando-se que o resultado agora adotado não obsta providências por parte de quem entender desatendido o regramento legal, com conseqüências concretas".

E, ainda, o da Segunda (2ª) Turma do Superior Tribunal de Justiça, conduzido pelo Ministro Peçanha Martins, 63 asserindo, com supedâneo nos magistérios de Hely Lopes Meirelles e Rodolfo Camargo Mancuso, em suma emental, que: "Ação para ressarcimento de possíveis danos ao erário municipal não se insere nas condições previstas na referida lei, não tendo o Ministério Público legitimidade para promover ação civil pública para esse fim específico".

Mostram enfim, esses excelentes julgados, com acuidade e precisão, os angustos limites da legitimação ministerial, cujo extravazamento implica, inarredavelmente, a carência da ação em decorrência da falta dessa sua importante condição. 64

c) Falta de interesse de agir

De outra banda, em nossa atividade advocatícia, além da conhecida causa atinente à pretensão obstativa da tradicional queimada do resíduo da plantação de cana-de-açúcar, dada a propalada poluição do (mesmo distante) meio ambiente citadino, - em cujo âmbito chegam a confundir-se ilegitimação para a causa e interesse processual, tomamos conhecimento de outro "tipo" de ação civil pública, - adjetivada de "acidentária", 65 e na qual o Ministério Público do Estado de São Paulo se diz guardião do interesse da "coletividade trabalhadora" de determinada obra (interesse tido, portanto, como coletivo).

Abstração feita dessa abusiva e imprópria invasão da esfera do interesse alheio (até porque, como é notório, os empregados da construção civil têm importante e ativo Sindicato), e da manifesta inexistência de interesses coletivo a serem tutelados; 66 deve ser esclarecido que a postulação chega ser temerária, e até levianas na medida em que asseverando o autor, na petição inicial, terem sido constatadas, na referida obra, "irregularidades e situações desconformes à legislação de segurança e medicina do trabalho", com "prazo imediato" (sic) e de dez dias para a sua regularização propôs a ação civil pública no dia seguinte ao da notificação da ré para repará-las, asseverando, verbis: "Por outro lado, tem o Ministério Público interesse de agir, independentemente dos prazos concedidos pela Administração, primeiro porque a NR 28.5.5 (Portaria 3.214/78) prescreve que a aplicação da multa não exime a empresa da responsabilidade penal porventura cabível, nem da obrigação de sanar as irregularidades encontradas. Segundo, porque não está o Ministério Público, ou qualquer legitimado ad causam ativo adstrito a qualquer prazo administrativo porventura concedido, uma vez que a ré deveria ter o seu ambiente de trabalho salubre, em conformidade com a lei. Uma vez descumprida a lei, surge a lesão ao direito e, conseqüentemente, o direito de perseguir em Juízo a sua reparação, pois eventual prazo administrativo não implica na suspensão ou interrupção, do inalienável direito de segurança e salubridade do ambiente laborativo" (textual).

Fácil fica de perceber, até mesmo num relance, que a afoiteza do ingresso em juízo implica, aí, forçosamente, a falta de interesse de agir, tanto mais quanto comprovada, de pronto, pela empresa demandada, a imediata reparação das irregularidades apontadas, restando a ação, por via de conseqüência, sem objeto, (exatamente de, nos termos da própria postulação, obrigar-se "a requerida, através desta ação, a cumprir as normas regulamentadoras já referidas").

Ora, isso significa, realmente, ausência de interesse processual, "centrado na necessidade ou utilidade da prestação jurisdicional reclamada". 67

Como explica, a propósito, Nelson Nery Júnior, 68 as "condições da ação, vale dizer, as condições para que seja proferida sentença sobre a questão de fundo (mérito), devem vir preenchidas quando da proprositura da ação e devem subsistir até o momento da prolação da sentença. Presentes quando da propositura mas, eventualmente ausentes no momento da prolação da sentença, é vedado ao juiz pronunciar-se sobre o mérito, já que o autor não tem mais direito de ver a lide decidida".

Trata-se, por certo, de situação análoga à prevista no art. 447 do Código de Processo Civil português, de "inutilidade superveniente da lide", cuja solução tem sido louvada pelos processualistas lusitanos; 69 e, como visto, também corretamente adotada pelas doutrina e jurisprundência pátrias, ao versarem a superveniente falta de interesse de agir. 70

12 Cotejo de interesses em conflito

De resto, no tocante, já agora, aos interesses em conflito, e para não alongar demasiadamente este estudo, deve ser colacionado o acórdão proferido pela Sétima (7ª) Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 71 cujo voto condutor, do Desembargador Lourenço Abbá Filho, bem enfatizou impor-se a prevalência do interesse da coletividade sobre o ministerial processual e os de alguns membros daquela, pontuando, verbis: "... Dessa forma, a ter-se em conta o argumento do interesse da coletividade, deverá preponderar o interesse da coletividade maior, sendo que o incômodo de alguns deve ser por eles suportado em benefício de todos os demais".

E, por fim, a remissão a voto do Desembargador Guerrieri Rezende, da mesma Câmara, no sentido de ser "inafastável observar que, em matéria de ecologia e meio ambiente, quando ao Juiz se apresentarem situações conflituosas, não lhe restará outra alternativa senão avaliar os interesses públicos primários e secundários, e com relação àqueles optar pelo que melhor atinja a finalidade pública. Optando por uma das soluções ensejadas, deverá adotá-la, porque seu compromisso principal é com a sua consciência e com os interesses sociais e econômicos postos à sua análise".

Bem é de ver, outrossim, que não se cuida, em tal questão, propriamente, de interesse processual, qual seja o "imprescindível relacionamento causal entre a situação antijurídica denunciada ao órgão do Poder Judiciário e a prestação jurisdicional dele solicitada", 72 mas de interesses materiais conflitantes, atinentes ao meritum causae e determinantes do acolhimento (procedência) ou do desacolhimento (improcedência) da pretensão manifestada pelo autor.

De qualquer modo, porém, envolvem eles diversificadas situações, nas quais reveladas, muitas vezes, com igual abusividade, a indevida promoção da ação civil pública pelo órgão ministerial, que, na aguda expressão da Kazuo Watanabe, 73 endossada por Vicente Greco Filho, importa no "amesquinhamento da relevância institucional do Parquet, que deve estar vocacionado, por definição constitucional, à 'defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis' (art. 127 CF)".

13 Responsabilização pelos ônus da sucumbência

Ante todo o expendido, é de ter-se, conseqüencialmente, em consideração o tema referente à responsabilização do autor vencido (especialmente quando proposta pelo Ministério Público), nos autos de ação civil pública inexitosa, pelos ônus da sucumbência.

Nesse particular, e abstração feita da prescindibilidade do adiantamento de quantias atinentes a custas e despesas processuais, pelo Ministério Público, instituição federal e estadual, a cuja Fazenda são elas devidas; à evidência que o respectivo pagamento e eventual reembolso ao demandado vencedor, assim como os dos honorários de advogado por ele constituído, devem ser suportados pelo demandante vencido: exige-o, superiormente, o regramento da isonomia processual, em que se especifica o da igualdade de todos perante a lei, tal como procuramos, anteriormente, e o outro alvitre, deixar explicitado. 74

Como bem observa, a tal propósito Yussef Said Cahali, 75 em lúcida doutrinação, que se faz adequada, não só à verba advocatícia, como, por igual, a todas as despesas decorrentes do processo formado à instância do autor, o artigo 20, e parágrafos, especialmente o 3º, do Código de Processo Civil, "no ápice de uma longa evolução histórica, acolhe a regra da sucumbência, entendendo, com isso, que o direito deve ser reintegrado inteiramente, como se a decisão fosse proferida no mesmo dia da demanda. Se as despesas tivessem de ser pagas pelo vencedor, a recomposição do direito reconhecido pela sentença seria, sem quaisquer justificação, apenas parcial".

Entretanto, e infelizmente, como é notório, nossos juízos e tribunais, apesar do destaque ao comodismo em que se posta o autor, principalmente o Ministério Público - que pode propor tantas e quantas ações civis públicas quiser, sem nenhum temor de sofrer as conseqüências da derrota na causa, - não têm, na sua generalidade, atentado para a desigualdade (evidenciada, em brilhante parecer, pelo Professor, e então Procurador da Justiça do Estado de São Paulo, Vicente Greco Filho) das situações em que se postam uma pessoa física ou jurídica de direito privado, que procura obter o reconhecimento judicial de seu direito subjetivo, e o proponente da ação civil pública, que, embora até execrado no respectivo julgamento, resta liberado da responsabilização pelos ônus da sucumbência, com a inserção, na parte final do decisum, do singelo e injurídico mote: "custas como de direito"...

Resta, apenas, no momento, ao analista do versado tema, o conforto de alguns atos decisórios, que constituem, inegavelmente, um expressivo avanço na inafastável consideração da igualdade com que devem ser tratadas, no processo civil, as partes litigantes. Poucos, em verdade, mas que aplicando corretamente a lei, propiciam a esperança de reformulação da orientação corrente, e tais como:

a) o julgamento proferido pela Primeira (1ª) Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 76 condenado o Ministério Público autor no pagamento das despesas processuais - posto que parte vencida, em consonância com o disposto no artigo 20 do Código de Processo Civil - eximindo-o, tão-somente, de "antecipar as despesas processuais, enquanto fiscal da lei", segundo a prescrição do artigo 27, e concluindo: "Como o Ministério Público é órgão do Estado, este responderá, cabendo, oportunamente, imputar o valor da condenação em sua verba orçamentária";

b) a complementação, via embargos de declaração, de sentença proferida pelo Juiz Adherbal dos Santos Acquati, da Décima Segunda (12ª) Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo, nos autos do processo nº 817/93, de ação civil pública promovida pelo Ministério Público Estadual em face do Município de São Paulo e outro, verbis: "Recebo os embargos declaratórios, porque tempestivos. Merecem acolhida, eis que de fato a sentença ostenta a omissão apontada. De fato, sendo sucumbente em parte o d. órgão autor, deve suportar os mesmos encargos das partes (art. 81 - CPC), razão pela qual declaro a sentença, para condenar o autor a pagar à Municipalidade de São Paulo honorários advocatícios, que arbitro em 20% do valor da condenação, conforme definido na sentença, quantia que lançará em sua verba honorária"; 77 e,

c) alguns venerandos acórdãos da Sétima (7ª) Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, dos quais, a título igualmente exemplificativo, fazem por merecer destaque os, já mencionados, da lavra dos Desembargadores Sérgio Pitombo e Lourenço Abbá Filho. 78

Em ambos - deve ser acrescentado - ficou corretamente assentado que o ônus do sucumbimento, quando proposta a ação pelo Ministério Público, há de ser suportado pela Fazenda Pública, na forma a seguir especificada nos seguintes tópicos:

"Assim, advém o ônus do sucumbimento, que será suportado pela Fazenda do Estado de São Paulo. 'O Ministério Público não sucumbe, não paga custas nem honorários. Na ação civil pública ou coletiva, proposta pela Ministério Público na defesa de interesses gerais da coletividade, quem arca com tais despesas, no caso de improcedência do pedido, será o próprio Estado' (Hugo Nigro Mazzilli, 'A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo', 7ª edição, São Paulo: Saraiva, 1995, p. 490). Ratificando tal entendimento, esclarece Rodolfo de Camargo Mancuso que: 'A lei da ação civil pública e o CDC (Código de Defesa do Consumidor, parênteses nossos) não exoneram o MP (Ministério Público, parênteses nossos), como o fazem com as associações. Parece correto o entendimento de que vencido o MP, os ônus da sucumbência são suportados pelo Estado' ('Ação Civil Pública em Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural e dos Consumidores', 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 222)"; e,

"O sucumbente, pois, que suporte os respectivos ônus, os quais, porém, tratando-se do Ministério Público, deverão ser carreados, como corretamente no caso foi, à Fazenda do Estado, consoante reiteradas decisões a respeito, pois em ação intentada pelo Ministério Público a sucumbência é do próprio Estado, dada a ausência de personalidade jurídica do órgão ministerial. Tal entendimento, inclusive, já foi anteriormente adotado por esta e. Câmara (cfr. Apel. Cível nº 264.007-1/1-00, de Barra Bonita, rel. o e. Des. Jovino de Sylos), e amparo encontra também na doutrina (cfr. 'Condenações Processuais na Ação Civil Pública', de Antônio Raphael da Silva Salvador, in: Tribuna da Magistratura, abril/maio de 1997, citando Rodolfo Camargo Mancuso - 'Ação Civil Pública', ed. RT, 4ª ed., pág. 222)".

14 Entendimento pretoriano equivocado

Isso tudo, não obstante, é de ser registrado, à finalização deste ensaio, que se tem mostrado deveres equivocado o entendimento pretoriano a respeito do tema versado, em variados e numerosos julgamentos, numa visão manifestamente distorcida da essencialidade da ação civil pública.

Uma das falhas de percepção - grave, em nosso entender, - é a alusiva à confusão generalizada entre ela e a ação de responsabilidade por atos de improbidade administrativa, como a efetivada pela Terceira (3ª) Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 79 na esteira de outros julgados, contendo o mesmo error in indicando, especificado nas seguintes ementas:

"MINISTÉRIO PÚBLICO - Ação civil pública - Interposição baseada em prejuízos financeiros causados ao patrimônio público por má gestão ou desvio de finalidade ou destinação de verbas orçamentárias ou de subvenções, auxílios e empréstimos - Legitimidade ad causam.

Ementa oficial: Por força dos preceitos informadores do nosso ordenamento jurídico, impõe-se reconhecer ao Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública com o objetivo de proteger o patrimônio público, especialmente quando baseia seu pedido em prejuízos financeiros de finalidade ou destinação das verbas orçamentárias ou de subvenções, auxílios e empréstimos";

"AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Improbidade administrativa - Prejuízos causados a ele por má gestão ou desvio ao erário - Obrigação de restituir aos cofres públicos - Admissibilidade, desde que comprovado o dano, estreme de dúvidas.

Ementa Oficial: Na hipótese de ação civil pública visando a anulação de atos praticados por autoridade da Administração Pública, sob a alegação de improbidade administrativa e de prejuízo ao erário, impõe-se admitir que a obrigação de restituir aos cofres públicos tem sustentação em dois presuspostos: a ilegalidade do ato e o seu poder de causar prejuízo. Infere-se disso que o dano não se presume. Há de ficar comprovado estreme de dúvida"; e,

"AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Improbidade administrativa - Sanções a serem impostas que devem guardar proporcionalidade com a extensão do dano e o eventual proveito obtido - Individualização de pena que não é privilégio do direito penal, impondo-se, também, no campo do direito civil, administrativo e tributário - Inteligência do art. 12, par. ún., da Lei nº 8.429/92.

Ementa Oficial: O par. ún. do art. 12 da Lei nº 8.429/92 estabelece que 'na fixação das penas previstas nesta Lei o Juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente', de modo que as sanções impostas em razão da prática de atos de improbidade administrativa por parte do Chefe do Executivo devem guardar proporcionalidade com a extensão do dano e o eventual proveito por ele obtido, posto que a individualização da pena, seja aflitiva, seja pecuniária, não é privilégio do direito penal, impondo-se, também, no campo do direito civil, administrativo e tributário". 80

Outra reside na inaceitável suposição de que não se pode conceder "limitação imposta pelo art. 1º da Lei nº 7.347/85, não só por força do contido na Lei nº 8.625/93, art. 25, IV, mas, também, por não exaustiva a fixação da legitimidade regulada pelo referido dispositivo para a propositura da ação", - de sorte a negar-se a taxatividade dos casos de utilização da ação civil pública, - tal como expresso, com apoio em outras manifestações do Superior Tribunal de Justiça, em também equivocado ato decisório proferido pela Ministra Eliana Calmon, no Agravo de Instrumento nº 271.318-SP. 81

E revela-se em diversificado e igualmente inusitado senso, na concessão de medida liminar, em autos de ação civil pública, objetivando a decretação da indisponibilidade de bens de réus, aos quais imputada a prática de apropriação ou desvio de sem dúvida alguma infringente dos recursos públicos - certamente da Fazenda Nacional, que tem corpo jurídico próprio, altamente especializado, - com o declarado escopo de "assegurar o ressarcimento do erário em defesa do patrimônio público, quando patente a sua malversação"; 82 ante o disposto no art. 16 da Lei nº 8.429/92, determinante, como visto, especificamente, da promoção de seqüestro, em casos que tais.

Mostram-se, em suma, tais atos decisórios, descognitivos da legislação em referência, e, portanto, eivados de manifesta distorção no trato do instituto da ação civil pública; vale dizer, reclamatários de ponderada meditação no sentido de por termo a esse equivocado enfoque, concretizado ao arrepio da lei.

§ 4º - Conclusão
15 Imperiosidade de conscientização da verdadeira utilidade do instituto analisado

Somando-se a tudo isso a também equivocada interpretação (e conseqüente errônea aplicação) do disposto nos arts. 287 do Código de Processo Civil e 11 e 12 da Lei nº 7.347/85, de sorte a formularem-se com freqüência, petições iniciais tecnicamente ineptas, não temos dúvida em afirmar, conclusivamente, e com o máximo respeito, que a utilização da ação civil pública, pelo Ministério Público, a par de exagerada, tem-se mostrado realmente abusiva. 83

Extrapolando comumente, os seus membros, encarregados de aforá-las, dos limites estabelecidos na legislação específica em vigor, tem-na conseqüente e infelizmente, desfigurado, vezes várias com o referendo de juízes que, exacerbando suposto interesse público, fazem por ignorar a indispensabilidade de tratamento paritário das partes, corolário inafastável do devido processo legal.

Urge, pois, que a consciência jurídica nacional, especialmente dos Chefes das respectivas instituições ministeriais e dos agentes do Poder Judiciário, 84 tenha presente a necessidade de pôr-se cobro à insólita situação a que chegamos, tida na devida conta a real importância do Ministério Público na proteção do patrimônio público, considerado em seu mais largo senso.

Fazemos nossas, nesse particular, as candentes palavras de René Ariel Dotti, 85 em excelente e difundido lavor, do qual merecem destaque os seguintes tópicos, verbis:

"As figuras do promotor e do Procurador de Justiça devem ressurgir, na perspectiva de um novo Estado, de um Estado social e democrático de Direito, inspirados na visão material do Homem e do mundo, na compreensão do ser e da sua circunstância e fortalecidos no seu campo de atividade, também difuso em certa perspectiva diante de novos textos legais e de infra-estrutura de ação. E assim, tais figuras já não aparecem mais como agentes reprodutores de acontecimentos distanciados no tempo; não constituem mais a segunda via para a investigação dos fatos, que estão a merecer o seu imediato conhecimento e a sua pronta intervenção"; e "Essa abrangente e tutelar dimensão do Ministério Público legitima e dignifica não apenas a Instituição e aqueles agentes missionários, como também o exercício de um mandato coletivo, aberto e permanente; o mandato para defender os interesses do Homem e da comunidade".

E ansiamos para que tal aconteça num futuro não muito remoto.

Somente o curso do tempo poderá melhor dizer dessa imperiosa e sublime conscientização.

Quem viver, verá!